21 de maio de 2025
Patrícia Kalil – Outras Palavras
“Os brancos não pensam muito adiante no futuro. Sempre estão preocupados demais com as coisas do momento. É por isso que eu gostaria que eles ouvissem minhas palavras. Gostaria que, após tê-las compreendido, dissessem a si mesmos: “Os Yanomami são gente diferente de nós e, no entanto, suas palavras são retas e claras. Agora entendemos o que eles pensam. Eles ali foram criados e vivem sem preocupação desde o primeiro tempo. O pensamento deles segue caminhos outros que o da mercadoria. Eles querem viver como lhes apraz. Seu costume é diferente. Querem defender sua terra porque desejam continuar vivendo nela como antigamente. Assim seja! Se eles não a protegerem, seus filhos não terão lugar para viver felizes. Vão pensar que a seus pais de fato faltava inteligência, já que só terão deixado para eles uma terra nua e queimada. Impregnada de fumaças de epidemia e cortada por rios de águas sujas!” Davi Kopenawa
As palavras de Davi Kopenawa acendem um campo de consciência radicalmente conectado com a vida, com o invisível e com os ciclos. Em A Queda do Céu, o pajé Yanomami conta como Omama criou a terra, a diversidade de vida, os xapiri, o vento e os rios. Inaugura um tempo em que tudo está entrelaçado e pulsante. É preciso ouvir e interpretar o canto dos pássaros.
No Acre, entre os Huni Kuin, a origem do mundo não está separada do dia a dia. Cada espécie tem seu yuxin, que são forças espirituais presentes em tudo que existe. Entre eles, o conhecimento verdadeiro vem dos sonhos e da troca entre todos os seres que dançam de olhos fechados em movimento contínuo, transformando tudo ao redor. Efeito borboleta.
Para os povos dos rios, o chão é memória, é tempo espiralado, é meio de vida. O território Guarani-Kaiowá é um “tekoha”, ou seja, onde é possível o modo de vida bom, justo, conectados com o espírito. Corpo e cultura se enraizam no solo vivo da floresta, entrelaçado com o invisível. Assim, todo alimento pode ser medicinal, desde que cultivado e colhido segundo os ensinamentos dos Ñande Ru, em harmonia com os jara kuera, os protetores espirituais de cada ser.
Para os Krenak, o rio é um parente querido. Como diz Ailton Krenak, “trata-se de sentir a vida nos outros seres, numa árvore, numa montanha, num peixe, num pássaro, e se implicar. A presença dos outros seres não apenas se soma à paisagem do lugar que habito, como modifica o mundo.”
Nos quilombos, o rufar dos saberes antigos desperta com o som grave dos tambores que ecoam de longe: o som reverbera as matrizes que resistiram ao mais horrendo tráfico humano perpetrado pela ordem colonial que ainda estrutura o presente.
Para as comunidades rurais no Brasil, a roça não é só plantio, é memória viva e resistência cotidiana. O território é expressão de um tempo quântico que se dobra sobre si, onde ado, presente e futuro caminham juntos. O chão não é de um, mas de todos. É a memória que sustenta o mundo. O território é infinito possível, condição fundamental.
Mas essa memória incomoda porque desestabiliza. Ela revela vínculos, alimenta o imaginário de futuros possíveis, resgata direitos e evoca outras formas de viver. E é justamente esse chão coletivo e colaborativo que a engrenagem do capital tenta arrancar. Assim, estamos presenciando, nesta semana, mais uma tentativa (que não será a última, nem a primeira) de apagamento institucional dos povos. Não apenas por meio da expropriação física, mas também ao tentar silenciar na lei as existências que ele sustenta. Preso a uma lógica de lucro, esse sistema operacional desatualizado só enxerga mercadoria. Eis o vício do dinheiro alimentado pela doença do século: o egoísmo que se espalha como um câncer na sociedade de consumo. Uma patologia social que precisa ser curada. E sabe onde está a cura? Nos territórios que seguem vivos e vibrantes, mesmo quando sistematicamente ignorados, ameaçados ou violados por sucessivos governos capturados pelos interesses dos super-ricos.
O “direito” ancestral não foi forjado por pessoas olhando sombras projetadas em uma caverna. Foi alimentado diretamente pela luz do Sol. É por isso que povos da floresta e do rio não envenenam as águas e o solo que os sustentam. É uma ética milenar. Quem reconhece o rio como parente, não mata o rio. Trata-se de um direito profundo de viver em equilíbrio, que não separa natureza e humanidade. Tudo é uma coisa só. Preservar o que sustenta a vida é garantir que netos e bisnetos também possam nadar em água limpa, cultivar na mesma terra e construir, em coletivo, casas tecidas com palhas, pedra, barro e paus. As bioconstruções das aldeias e quilombos ensinam a sabedoria de estruturas efêmeras que não geram resíduos, pois são absorvidas e renovadas com as estações. É usufruir daquilo que é de todos os seres e para todos os reinos.
Como diz Davi Kopenawa: “Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos anteados. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente. Não temos de desenhá-las, como eles fazem com as suas. Nem por isso elas irão desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós. Por isso nossa memória é longa e forte.”
Um direito tecido a partir da compreensão da coletividade como um organismo vivo, diverso e complexo. Um direito que nasce da floresta, que corre nos rios, que irradia do Sol. Que se transmite de geração em geração. Que está guardado em toda semente. E que carrega, há milênios, a sabedoria dos ciclos. In-formação cósmica, que compreende que tudo se conecta. E comunica.
Em contraste com esse direito vivo e ancestral, está o sistema jurídico codificado, arquitetado em gabinetes e corredores alheios ao chão e à história. A República, no plano das ideias, defende que o que é de todos será cuidado por todos. De origem romana, nasce como res publica, que é a coisa pública, o bem comum. Mas, para que esse pacto se cumpra, a ideia de República precisa ser compreendida, cultivada e vivida por quem faz parte dela e, principalmente, por aqueles que ocupam, provisoriamente, o lugar de decidir sobre a vida de todos.
Na prática, o direito oficial é costurado, pedaço a pedaço, sobre os fios lançados pela Constituição de 1988. É ela que reconhece, no artigo 225, o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo ao poder público e à coletividade o dever de protegê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Mas quem maneja a agulha para transformar esse princípio em norma concreta é o Congresso Nacional. Os representantes raramente escutam e quase nunca pisam o chão sobre o qual legislam. Tampouco demonstram vontade de dialogar com a ciência atual. Embora a Constituição determine que as leis devam ser feitas em nome do povo e com o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária, quem está realmente sendo ouvido? Muitos parlamentares ignoram abertamente o bem comum. O baixo letramento político, social e ambiental no Congresso é tão crítico que deveria, ele próprio, ser objeto de estudo. E assim, a política se rende aos lobbies econômicos. Representantes eleitos am a servir aos interesses do agronegócio predatório, da mineração intensiva e de grandes empreendimentos que reduzem a floresta viva à condição de mercadoria.
Essa elite ecocida é formada por conglomerados multinacionais e por políticos que exploram o planeta sem restaurar. São eles que tentam emplacar o Projeto de Lei nº 2.159/2021, corretamente apelidado de PL da Devastação. A proposta não visa proteger a vida. Ela busca blindar os próprios interesses dos plutocratas antiambientais, que atuam como desestabilizadores planetários. É o Capitaloceno em marcha acelerada, empilhando ruínas. Querem reduzir o licenciamento ambiental a uma mera formalidade burocrática. No Brasil, vale tudo… até acontecer o próximo desastre.
Uma nota técnica do Observatório do Clima alerta que o projeto praticamente dispensa licenciamento para diversas atividades agropecuárias. Em muitos casos, basta apenas o preenchimento de um formulário. Trata-se de isenções generalizadas e do autolicenciamento para destruir. O PL também desvincula a licença da outorga de uso da água e do solo. E tudo isso acontece em plena crise climática, com diversas regiões já vivendo colapsos hídricos.
Para Malu Ribeiro, diretora do SOS Mata Atlântica, vamos ver crescer o conflito por água. “Essa fragmentação é um gravíssimo retrocesso. A emergência climática exige análise integrada de impactos ambientais. O mesmo se aplica às pretendidas facilidades para supressão de vegetação nativa de obras de infraestrutura – da maneira como o texto está redigido, favorece o desmatamento e a perda de biodiversidade. Para um país que quer ser referência em ações climáticas, é uma boiada sem precedentes”.
O Instituto Socioambiental (ISA) enfatiza que os efeitos da aprovação do PL seriam catastróficos. O texto que tramita no Senado ameaça mais de 3 mil áreas protegidas no Brasil, incluindo 259 Terras Indígenas (quase um terço de todas as TIs do país) e mais de 1.500 territórios quilombolas, cerca de 80% dessas áreas reconhecidas. Essas populações, até hoje protegidas pela Constituição, deixariam de ser escutadas em futuros licenciamentos. Como alerta o próprio ISA, “esses territórios, para efeitos do licenciamento, simplesmente deixarão de existir.” De acordo com a advogada Alice Dandara, isso institucionaliza o racismo ambiental. “A proposta joga ao descaso e à violência comunidades de mais de 40% das Terras Indígenas e de mais de 95% dos territórios quilombolas do país”, declara. Além disso, o projeto reduz o alcance das análises de impactos ambientais. Em outras palavras, significa que efeitos indiretos (como desmatamento, fragmentação de habitats, deslocamento de comunidades e degradação de bacias hidrográficas) sejam simplesmente ignorados.
O PL da Devastação também elimina a exigência de consulta e autorização dos órgãos gestores das Unidades de Conservação. Projeta um cenário de descontrole ambiental. É um desmonte do sistema nacional de proteção, construído ao longo de décadas. Um estudo de caso citado na nota técnica do ISA mostra o impacto da mudança: entre 75 obras previstas no PAC 2023 para a Amazônia Legal, o número de áreas protegidas afetadas cai de 277 para 102 caso o PL entre em vigor. Ou seja, a desproteção de 18 milhões de hectares de floresta, o equivalente ao território inteiro do Paraná.
Mas floresta não é só medida em hectares. É casa, é espírito, é escola viva. Os Huni Kuin ensinam: o conhecimento vive nas árvores, corre nos rios e aparece em sonho. E a floresta, quando não é ouvida, responde. Como diz Sidarta Ribeiro, os povos indígenas têm a nos ensinar uma ciência de mundo, que é a ciência do cuidado. Sonhar é escutar a Terra. Precisamos urgentemente reaprender a sonhar coletivamente. E barrar esse projeto de lei.
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